Ensaio sobre a animalização do humano e a humanização do animal em Vidas Secas
A
ANIMALIZAÇÃO DO HUMANO & A HUMANIZAÇÃO DO ANIMAL EM VIDAS
SECAS
GALVÃO, Marcos V.
- INTRODUÇÃO
Neste
ensaio, pretendo falar sobre a humanização de um personagem animal
e sobre a animalização de personagens humanos no romance Vidas
Secas
(1938), do autor Graciliano Ramos (1892-1953). Para isso, citarei
exemplos de cenas e diálogos reproduzidas no romance que
exemplifiquem a caracterização de humanos e animal como seres
irracionais e racional respectivamente.
Vidas
Secas,
livro escrito entre 1937 e 1938, publicado em 1938, conta a história
das infelicidades de uma família em condições de pobreza extrema
que tenta sobreviver nas planícies de um sertão árido e sem vida.
O romance descreve não só as dificuldades da família no que se diz
respeito à superação das necessidades fisiológicas e materiais,
mas principalmente sobre o que isso acarreta ao psicológico, levando
à (des)construção da visão de si no espaço de pertencimento.
Os
exemplos se direcionarão para eventos em que Baleia,
personagem de uma cadela pertencente à família protagonista, seja
representada possuindo sentimentos geralmente estritos de seres
humanos, como compaixão, vontade, opinião, imaginação, etc.; e,
da mesma forma, para eventos em que os personagens pertencentes à
família sejam representados com características animalescas, como a
miséria referente à falta alimentos, o desprovimento de fala e,
logo, do diálogo, uso de léxico geralmente utilizado para se
referir a seres animais, corpo e movimento, etc.
Após
os exemplos citados e, depois, discutidos, pretendo propor o motivo
qual levou o autor a idealizar a construção de personagens
“deformados” em outros seres, relacionando-os com o espaço,
contexto social, tempo e literário.
Por
fim, tentarei mostrar como o uso desse artifício de transfiguração,
em conjunto das descrições retamente imparciais do narrador,
constroem um imersivo pathos
discursivo, que toca profundamente o leitor durante a leitura do
romance, principalmente nas cenas em que personagens, animal e
humano, interagem entre si.
-
O ANIMAL COMO HUMANO: O ABRAÇO DE BALEIA
Baleia
é a personagem de uma cachorra que acompanha a família protagonista
durante sua viagem, rotina e infelicidades na planície árida do
sertão criado em Vidas
Secas.
O pai Fabiano,
a mãe Sinha
Vitória,
o “Menino
mais novo”
e o “Menino
mais velho”
compõem os personagens dessa família vagante, pela qual, já no
início do romance, a cachorra Baleia
toma a frente: “Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a
frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a
língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as
pessoas, que se retardavam.” (RAMOS, p. 45, 1972).
Como
defende RIBEIRO (2012), Graciliano Ramos constrói a personagem
Baleia
numa posição ativa semelhante aos outros personagens humanos do
romance: complexa, profunda enquanto personalidade, se mostrando
sempre pertencente ao grupo no sentido em que faz decisões próprias,
tem gostos, desejos, pensamentos críticos, determinados, se desloca
à frente em emoção.
“Mesmo
uma leitura superficial do romance revela que Baleia não é apenas
uma função narrativa, algo como um contraponto às figuras humanas,
ou ainda uma simples alegoria, sob a qual se esconderia, mal
disfarçada, a voz do autor. Ela é um personagem complexo e
irredutível como os demais. Desde o capítulo inicial do livro
vemo-la mexer-se com relativa independência de movimentos,
cumprindo, sim, o papel que lhe cabe (caçar, sair em busca de
alimento escondido na vegetação rala da catinga), mas nem nesse
ponto diferenciando-se demasiado dos outros membros do clã, já que
todos cumprem também papéis específicos na estrutura familiar.”
(RIBEIRO, p. 125, 2012)
Ainda
no primeiro capítulo, a decisão de caçar esteve interligada com a
escolha de conviver e cooperar em um grupo de indivíduos semelhantes
no que se refere às necessidades de sobrevivência: “Nesse ponto,
Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu o cheiro de
preás, farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu
correndo.” (RAMOS, p. 47, 1972); “Iam-se amodorrando e foram
despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá [...] Aquilo
era uma caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo.” (RAMOS,
p. 48, 1972).
Há
uma troca entre os personagens humanos e a cachorra, no sentido em
que eles se misturam, os sentimentos de um são representados pelas
ações do outro. “O estímulo subjetivo que começa (ou torna) a
animar os sertanejos (a esperança, a projeção de um futuro) se vê
materializado na ação que se diria instintiva da cachorrinha.
(RIBEIRO, p. 133, 2012)
Nesse
sentido, a personagem se revelou participante do grupo como igual aos
outros integrantes. Isso pode ser exemplificado pelas falas de
Fabiano, o pai, quando se refere a esse: “Pensou na mulher, nos
filhos e na cachorrinha.” (RAMOS, p. 69, 1972); “Mas havia a
mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha” (RAMOS, p. 75,
1972);
Além
disso, o livro nos introduz um detalhe interessante sobre a
personagem: ela possui impressões e sentimentos acerca do que ocorre
no interior do grupo. “Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E
como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a
hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.”. Essas questões de
escolhas racionais, como qual o momento para comer tal alimento, ou
compreender o tempo específico para descansar, não podem ser
entendidas como próprias de um animal irracional, mas sim de um ser
que compreende seus sentimentos. Comer e dormir são necessidades
fisiológicas que um cão irracionalmente pode fazer, mas
problematizar sobre esses desejos parece ser o verdadeiro interesse
de Baleia.
Esses fatos a aproxima mais da família, como participante.
Baleia
não só interage com a família como integrante, mas ela se
comunica: “Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia
respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de
entender.” (RAMOS, p. 94, 1972); opina: “Baleia detestava
expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou.”
(RAMOS, p. 99, 1972); qualifica: “Não descobriu neles nenhum sinal
de solidariedade: o irmão ria como um doido, Baleia, séria,
desaprovava tudo aquilo.” (RAMOS, p. 90, 1972); imagina: “Acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme.” (RAMOS, p. 56, 1972); externa seus sentimentos:
“Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho”
(RAMOS, p. 56, 1972); e, ainda, empatiza com os sentimentos dos
outros: “O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se
para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva.” (RAMOS, p. 101,
1972).
Um
abraço de Baleia
não é compreendido apenas como um toque sensorial, mas ele evoca
sentimentos nos personagens, conforta a tristeza, interage e reflete
as emoções dos personagens.
“Ao
longo de todo o romance, e não somente no episódio que narra a sua
morte, Baleia é entrevista como ser pensante (o que não é o mesmo
que dizer um ser racional), possuindo independência de ação, ponto
de vista sobre os homens que com ela convivem e uma linguagem
específica, despida de palavras, mas que o autor busca compreender e
traduzir no texto.” (RIBEIRO, p. 134, 2012)
O
motivo central do autor para a criação de uma personagem animal com
características psicologicamente profundas parece ter sido a busca
pela sua aproximação como entidade empática dos outros personagens
humanos dos quais ela interage.
-
O HUMANO COMO ANIMAL: O ESPOJO DOS MENINOS
Os
personagens que compõem a família moradora do sertão de Vidas
Secas
também apresentam características acrescentadas pelo autor que
parecem animalescas, não só do ponto de vista fisiológico, mas até
mesmo na construção psicológica que cada um tem de si. Darei
exemplos do pai, Fabiano,
e dos filhos, O
mais velho
e o mais
novo.
Sinha
Vitória,
diferentemente dos outros personagens, não parece aceitar de bom
grado as infelicidades passadas pela família e, por isso, sempre
deseja e sonha com uma mudança na vida do grupo. Não pude encontrar
bons exemplos animalescos mais claros dessa personagem.
-
Fabiano:
Graciliano
Ramos nos apresenta um personagem rígido, resistente, que compreende
as planícies do sertão, entende os métodos de sobrevivência e os
costumes que dão como resultado a sobrevida de sua família. Esses
mesmos costumes e modos de agir evocam a comparação de Fabiano
com um animal que vive apenas para sanar as necessidades fisiológicas
do corpo:
“Fabiano
tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no
bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas,
esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu
muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que
vinham nascendo.” (RAMOS, p. 51, 1972)
Essa
passagem revela um corpo deformado que Fabiano
carrega: a água de animais para beber, as unhas para cavar, o
debruçar para beber, o papo para cima. Há uma mistura de movimentos
animais encaixados à figura do pai.
Além
disso, podemos notar uma deformação na percepção de si:
“– Você
é um bicho, Fabiano.
Isto
para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de
vencer dificuldades.
Chegara
naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo,
fumando o seu cigarro de palha.
– Um
bicho, Fabiano.” (RAMOS, p. 53-54, 1972)
Nesse
sentido, a transfiguração em animal de Fabiano
está relacionada com a necessidade de sobrevivência em um habitat
hostil, que seleciona os fortes e rejeita os fracos;
“Lembrou-se
de Seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado
era Seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: ‘– Seu Tomás, vossemecê não
regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, Seu Tomás
se estrepa, igualzinho aos outros.’ Pois viera a seca, e o pobre
velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andara por aí, mole.
Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não
podia aguentar o varão puxado.” (RAMOS, p. 57, 1972)
Esse
trecho mostra um afastamento entre o personagem de Seu
Tomás
e Fabiano.
O primeiro, dotado de conhecimento e possuidor de peças cobiçadas,
não se prepara materialmente e psicologicamente para a seca; o
segundo, pobre, confuso, deformado, relembra a cada segundo das
desgraças que a seca poderá trazer a família. O sertão derruba o
primeiro e judia do segundo, o conhecimento rebuscado não pode matar
a fome, mas a força, os costumes, podem. As condições de Fabiano
o animalizam, evocam força para as necessidades básicas, inutilizam
a fala (e, assim, a comunicação), desvalorizam o conhecimento.
“Vivia
longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros
quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado,
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem
cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia”
(RAMOS, p. 55, 1972)
Fabiano
não é só obrigado a se deslocar para este estado “meio-animal”,
mas ele pensa isso, ele sabe, compreende a necessidade dessa mudança,
dessa aceitação de si.
-
O Menino mais velho & O Menino mais novo:
Assim
como o pai, o menino
mais novo
se deforma em silhuetas animais: “Arredou-se, fez tenção de
entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua
alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também.”
(RAMOS, p. 88, 1972). Ele parece interagir, aprender e se misturar
com o ambiente, mas em um nível de pertencimento, como se a sua casa
fosse o sertão e o sertão o construísse por meio das figuras do
espaço.
O
menino
mais velho,
em uma cena imagética e existencialista, problematiza a profundidade
de uma palavra e a inutilidade do conhecimento e da curiosidade às
necessidades básicas de sobrevivência. Sozinho, e com o vocabulário
animalizado, somente Baleia
o conforta: “O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da
cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho um história. Tinha um
vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no
tempo da seca.” (RAMOS, p. 94, 1972)
PATTO
(2012) explica que o silêncio é imposto pelas consequências das
infelicidades que se sucedem nas vidas da família de Fabiano:
“Sobre
a educação dos filhos, ele sabe que, enquanto estiverem atados à
labuta esgotante para satisfazer necessidades biológicas e garantir
a sobrevivência, enquanto estiverem atados à terra como escravos e
enquanto confundirem seus corpos com os dos cavalos, “as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade” serão inúteis e talvez
perigosas. Numa paisagem seca, governada por um patrão seco, o
silêncio que guardam é imposição da dureza da lida e dos
poderosos.” (PATTO, p. 04, 2012)
Os
dois filhos, assim como o pai Fabiano, por vezes são apresentados
possuindo movimentos corporais animalescos: “Uma ressurreição. As
cores da saúde voltariam à cara triste de Sinha Vitória. Os
meninos se espojariam1
na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos
arredores. A caatinga ficaria verde.” (RAMOS, p. 51, 1972)
-
ANÁLISE E CONCLUSÃO
Durante
todo o romance, podemos notar uma enorme dificuldade para a
reprodução da fala pelos personagens, uma dificuldade de se
expressar e, também, um medo da inutilidade da própria opinião
diante do mundo externo. Acredito que esses artifícios de
impossibilidade linguística utilizados por Graciliano Ramos para
descrever os personagens podem ser compreendidos a partir de um ponto
de vista psicológico.
Há
um forte paradoxo psicológico dos personagens no sentido de que eles
devem lutar para sanar as necessidades fisiológicas básicas, mas,
consequentemente, deixar de lado o conhecimento formal (do qual
possivelmente não tiveram acesso). Isso acarreta uma enorme
insegurança nas relações interpessoais.
Se
o enredo já é marcado pela apresentação da enorme desigualdade
que envolve as classes sociais, esses artifícios literários de
reconhecimento de si denunciam as consequências infelizes da
animalização do ser humano:
“Os
dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos
extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso
pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas. Supunham
que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na
serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia haver tantas
casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar. Seria que o
povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as
barracas? Estavam acostumados a aguentar cascudos e puxões de
orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não se comportassem como
Sinha Vitória, mas os pequenos retraíram-se, encostavam-se às
paredes, meio encadeados, os ouvidos cheios de rumores estranhos.”
(RAMOS, p. 114, 1972)
Esse
deslocamento, esse medo das pessoas, do seu olhar crítico ou da
rosto “brabo” são sintomáticos, são sintomas de um
deslocamento interior, da não aceitação de si diante das
dificuldades que arrastam o corpo. A não aceitação idealizada
pelos outros evoca a não aceitação de si, no sentido em que o “eu”
é incompleto, sempre insuficiente ao “outro”. Por isso, a voz é
“fraca”, “minguada”, “gutural”, há uma dificuldade na
expressão dos sentimentos dos personagens por meio da voz, há
também um medo da recusa.
O
problema central do enredo é que esse sentimento de deslocamento já
é firme aos personagens, deixou de ser uma construção para se
tornar sutilidade, e é essa sutilidade internalizada ao ser que
animaliza o ser humano, é essa condição de aceitação e
não-aceitação que condiciona Fabiano
a se questionar sua real figura:
“– Fabiano,
você é homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se,
notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se
ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas
um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. [...]
Olhou
em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
– Você
é bicho, Fabiano.” (RAMOS, p. 53, 1972)
O
autor apresenta um personagem que se animaliza voluntariamente, ou
seja, apresenta essa deformação de forma sutil, mas ignora os
processos sociais e psicológicos que fazem parte dessa construção
de si. Essa é exatamente a crítica que foi incumbida de denunciar
um problema social.
Esse
apagamento da construção é utilizado como artifício de psicologia
reversa para criticar e denunciar o próprio apagamento que a
sociedade impõe por vezes aos sertanejos vagantes do sertão seco.
Nesse sentido, o narrador se torna extremamente parcial pelo próprio
viés da imparcialidade. Ele está interpelando o leitor a se
questionar: “Pode alguém viver nessas condições? Quais
discussões envolvem este tema?”.
O
romance apresenta um pathos
discursivo intensificado quando ele interpela o leitor, colocando-o
como expectador e interlocutor dos personagens, como empático às
situações que atravessam a vida dos protagonistas. Esse recurso é
ainda intensificado pela grande capacidade imagética que o narrador
reproduz no romance:
“– Anda,
excomungado.
O
pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração
grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca
aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança
irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas
dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia
onde.” (RAMOS, p. 44, 1972)
Nesse
trecho, há uma expressão clara de ira: nas palavras, nos
movimentos, no rosto de personagens. O leitor recria as imagens
reproduzidas com grande fidelidade a aquilo que, explicado
imparcialmente pelo narrador, seria a realidade da vida do sertão. A
seca é “necessária”, mas a obstinação, a insistência numa
ideia, não se “justifica”. O pathos
é
rico e, por isso, é fácil se posicionar emocionalmente no lugar do
outro.
“O
menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a
fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira.
[...] Sentiu-se fraco e desamparado, olhos os braços magros, os
dedos finos, pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos. [...]
Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou.”
(RAMOS, p. 99-100, 1972)
Acredito,
então, que a animalização do humano e a humanização do animal,
em Vidas
Secas,
não
se justifique apenas pelo seu efeito estilístico, mas sim pelo seu
fim. Quando há uma humanização do animal, há uma busca pela
proximidade fisiológica e psicológica da figura dele ao ser humano.
Da mesma forma, quando há uma animalização do humano, há também
uma aproximação das características físicas e psicológicas dele
a um animal irracional.
Nesse
sentido, o que temos é uma aproximação de todos os personagens,
animal e humanos, em um só protagonista: o fardo da infeliz vida.
Animal e humano estão presentes no mesmo nível: aquele que sofre os
males da seca. A fome, o calor, o frio, a sede, a tristeza, o carinho
e, principalmente, o amor, são sentimentos de todos nós, cão ou
ser humano.
Bibliografia
PATTO, M. H. (2012). O mundo coberto de penas: Família e Utopia em
Vidas Secas. Estudos Avançados 26 (76).
RAMOS, G. (1972). Vidas Secas (30 ed.). São Paulo: Martins.
RIBEIRO, G. S. (2012). Pensamento Animal. Em G. S. RIBEIRO, O
drama ético na obra de Graciliano Ramos: leituras a partir de
Jacques Derrida.
1
Espojar: Revolver-se
no chão (como o cão).
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